domingo, 20 de outubro de 2024

Identidade de terreiro

 A vida urbana nas grandes metrópoles tem, cada vez mais, conduzido à uma generalizada crise de identidade.
As pessoas crescem em um contexto de múltiplas influências culturais, entre grupo e tribos que se expressam cada um a seu modo. Roupas, cabelo, música, espaços públicos formam um mosaico quase infinito de possibilidades. Um dos grandes desafios da juventude é o enquadramento à algum dos muitos estilos que os rodeiam.
A caracterização dos estilos das chamadas tribos urbanas se dá pelo viés cultural e artístico, na maioria dos casos. Porém há outras dimensões que também servem como formadoras e unificadoras de identidades como a religião.
O Candomblé é, sem dúvida, uma tradição que vai muito além de mais uma religião com seus códigos morais e éticos. Ele é permeado por uma extensa rede de significados e símbolos que a ancestralidade, a expressão da fé, a maneira de ver e interpretar o mundo, a relação com o mundo espiritual e com a natureza.
No Candomblé há diversos fatores que promovem a formação de uma identidade comum em torno de suas práticas. Um dos grandes fatores de formação de identidade é a ruptura com tabus culturais e sociais. A afirmação étnica, ou seja, o reconhecimento e expressão da negritude. Além disso. A expressão de uma negritude que está além da cor da pele. Que supera os limites da aparência física. No candomblé negros e brancos comungam da mesma linguagem, dos mesmos símbolos, dos mesmos rituais e da mesma esteira. É obvio que há exceções e incompreensões. Contudo nenhum tipo de intolerância é comum ao culto aos Orixás. Isso também cabe à questão de gênero e sexualidade. Normalmente a homossexualidade não é um tabu para os candomblecistas. Homens não são superiores às mulheres. Nem o contrário. Do mesmo modo em que há restrições para mulheres há para homens. Não existe nenhum tipo de restrição ou condenação à relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo. Nem mesmo à maneira como as pessoas se comportam, se vestem e se expressam de acordo com seu gênero.  
O Candomblé é também a religião da convivência e da diversidade. Crianças e idosos, heteros e homos, brancos e negros, homens e mulheres, analfabetos e doutores, pobres e ricos. Todos são acolhidos no seio das casas de Candomblé. E fator máximo e unificador de tal diversidade se resume em uma coisa: a fé nos Orixás. Por isso é essencial perceber a impressionante singularidade desse tipo de formação de identidade. A fé nos Orixás, enquanto ancestrais comuns, une a diversidade. Determina a formação de círculos sociais únicos. Incomuns a qualquer outra religião.
Essa característica faz do Candomblé algo que vai além de uma mera religião, como já dito. As casas de Orixá são círculos sociais e culturais que dialogam, compartilham e se integram à blocos de afoxé, escolas de samba, centros culturais, ONGs, escolas de capoeira, grupo de dança, maracatus, congados e muitas outras manifestações. No entanto nunca devemos resumir ou equiparar o Candomblé em si a tais círculos sócio\culturais. Por que esse culto abranje e se relaciona com tais círculos, ele é, antes de tudo, uma religião. E enquanto religião é a fonte de doutrinação espiritual, de códigos morais e éticos que servem para reger seu comportamento, suas relações humanas, sua conduta pessoal. Enquanto religião, o Candomblé deve ser a fonte de evolução e crescimento da alma. Essa questão nos coloca diante de um grave problema no que diz respeito ao comprometimento e dedicação à prática religiosa. Há muitas pessoas que frequentam o Candomblé como um circulo social apenas, e não como religião. E os círculos sociais satisfazem anseios imediatos e superficiais tais como amizades, diversão, relacionamentos afetivos e sexuais. E como superficiais que são tais questões, se desgastam com o tempo. Portanto o compromisso com a casa a que a pessoa pertence ou com a própria religião como um todo também se desgastam quando a encaro como um círculo social. E as pessoas que assim conduzem sua vida espiritual são fadadas a viveram trocando de casa ou abandonam a religião. Isso quando não se convertem a outras religiões, principalmente evangélicas, e se dedicam a denegrir a imagem do Candomblé e seus adeptos. Buscando uma religião ou um local que preencha seu vazio, que na realidade não poderá ser preenchido por religião nenhuma, pois esse tipo de vazio não é religioso mas sim de personalidade. E tal vazio, o vazio de personalidade só pode ser preenchido pela humildade de estar sempre disposto a crescer em si mesmo. A reconhecer sua própria insignificância e ignorância perante a Natureza e aos sábios sacerdotes espirituais que dedicam suas vidas a tentar amenizar o sofrimento dos outros.
Não se enche copos que já estão cheios. Ou seja, pessoas que não se abrem à mudanças, que não buscam o autoconhecimento e auto-reflexão, não reconhecem os próprios vícios, defeitos e erros nunca se sentirão satisfeitas com religião alguma. E as pessoas que passam a freqüentar as casas de Candomblé e acabam se iniciando meramente pela questão de participar de um determinado círculo social pois se identifica geralmente chegam com seus copos cheios. E logo se cansam e saem denegrindo a imagem da religião em igrejas evangélicas e em outros círculos sociais. 



sábado, 19 de outubro de 2024

Quanto custa o Orixá

Os Orixás existem para serem louvados e não vendidos. O culto aos orixás, independente de sua forma vive um grave problema. A comercialização de sua fé. Quando se fala em “terreiro de macumba’”, em pai ou mãe de santo, às pessoas que não são adeptas imaginam um feitiço, uma mironga, uma mandinga para trazer o amor, arrumar um emprego ou prejudicar um inimigo. Mulheres e homens traídos e vendedores que não conseguem vender são os que mais procuram. O jogo de Búzios é um instrumento de adivinhação nesse comércio. O ebó é algo que tem como objetivo resolver os problemas das pessoas. A iniciação é algo que trará o melhor emprego, o melhor companheiro, ou companheira, e todos os problemas das pessoas são resolvidos depois de iniciados. Estabelece-se uma relação exclusiva de troca entre o Orixá e aquele que cultua. Existem pessoas que colocam o Orixá de castigo. Fazem ameaças do tipo: “se você não me trazer tal coisa não lhe darei de comer”. Dentro de um terreiro se louva a roupa mais bonita e mais cara. O pé de dança de quem está incorporado. A comida e a bebida que serão servidas após o culto. A relação entre fé e dinheiro no culto aos Orixás é muito presente e negativa.
Os motivos que levam a tal questão são muitos. Fazendo comparações podemos afirmar que em outras religiões também há tal relação. Porém elas são institucionalizadas. O adepto tem consciência que sua contribuição tem um fim, seja ele justo ou não. Toda religião precisa de templo. Nesse templo se gasta com água, energia elétrica, manutenção do espaço. Na maioria deles servem-se comidas e bebidas de graça. Os sacerdotes e sacerdotisas precisam de moradia, tem gastos, comem, bebem, pagam contas. É claro que há abusos e enriquecimentos incoerentes, mas é fato que é necessário estabelecer um sistema econômico para manter um centro religioso. No culto aos Orixás não há uma instituição central. Cada casa é uma instituição presidida pelo Babalorixá ou Yalorixá. Assim sendo, para que se estabeleça uma organização econômica adequada os adeptos devem colaborar com tal instituição, na casa ou centro de culto aos orixás. O problema é que muitas pessoas, que ingressam no mundo do culto aos orixás, procuram soluções para problemas de dinheiro e/ou amor, na maioria das vezes. Assim sendo, essas pessoas não estão dispostas a realmente fazerem parte de uma instituição religiosa organizada. São pessoas que não mantém um compromisso com mensalidade, com freqüência e contribuição para a manutenção da casa a que faz parte. Nesse caso, o Babalorixá ou Yalorixá tem trabalhar em outros tipos de emprego para sustentar sua própria casa ou recorrer ao comércio do jogo de búzios, dos ebós, dos feitiços para amor e dinheiro e até àqueles para prejudicar inimigos.
Filhos de santo não sustentam seu templo. Não o valorizam como tal. Salvo as exceções. Assim, no fim das contas, são os clientes, os que menos se beneficiam com a força do Orixá que acabam sustentando a existência do Axé e dos sacerdotes e sacerdotizas.

Nessa realidade muitas pessoas se tornaram sacerdotes espirituais sob duas condições. Ou compartilhando dessa prática deturpada ou lutando contra ela. E a fonte do problema é mais sutil do que parece. A falta de entendimento sobre a própria religião. A falta de consciência de que o culto aos orixás é uma religião que tem fundamentos muitos sérios. Existe ética e moral em toda sua existência e nas regras que a regem. 

Candomblé de Nação



A pura racionalidade em palavras e argumentos nunca dará conta de explicar o que realmente é o culto ancestral dos Orixás. Isso porque as concepções de mundo na tradição Iorubá, que constituiu e ainda constitui umas das mais autênticas e singulares expressões de culto Ancestral do mundo. Temos no Brasil um grande expoente, talvez um dos maiores exemplos desse culto ancestral em plena existência, preservada e em expansão: o Candomblé de Nação Ketu¹. O Candomblé enquanto uma religião constituída a partir do culto ancestral Iorubá, tem como conceito estrutural a reconstituição de uma Nação territorialmente perdida no ato do embarque de um navio negreiro.

 Oió, Ilê Ifé, Ifé, Ketu, Osogbô, Irê, eram nações politicamente independentes e cultural e ancestralmente interligadas, que por resultado de um conjunto de fatores  Oduduwa é o patriarca dos reinos iorubas, sendo histórica e mitologicamente associado à fundação da cidade de Ifé após uma longa migração proveniente das regiões árabes (aproximadamente séc. IX d.C.).



Portanto temos aqui uma matriz primordial de toda a cosmogonia, mitologia, sistema oracular e numerologia iorubana: grupos provenientes do norte da África e regiões Árabes. Ao longo do tempo o idioma Iorubá subdividiu-se em dialetos ao longo das regiões e sub-grupos e reinos independentes, tais como os Ibô, (…). Séculos depois o trágico processo de expansão das atividades comerciais escravistas interligou, em interesses territoriais e econômicos, a expansão bélica/religiosa do mundo Islâmico ao lucrativo comércio de escravos para a América. E dessa interligação resultou em uma feroz expansão Jihadista e comercial empreendida pelo mundo islâmico aos reinos Iorubas que tinha como mercado de consumo de seus despojos de guerra (pessoas) portugueses, ingleses e espanhóis.  

É nesse cenário que predominava a hegemonia do Império de Oyó sobre outros reinos e sub-nações*, especialmente sobre o grupo Jeje. Um grupo linguístico irmão ou derivado do tronco Iorubá. Inclusive, segundo fontes diversas (José Beniste, Roger Bastide, Pierre Verger e outros) A diáspora forçada de grupos Jejes para a américa é também resultado de conflitos diretos com Iorubás e com os Haussás (grupo proveniente do norte da África, islamizados). Esse conflito amplo estabeleceu-se intensamente em fins do séc. XVII à meados do séc. XVIII.


Enquanto os altos círculos estruturais da sociedade brasileira se organizava suas articulações para manutenção arbitrária e entreguista de suas devidas estruturas de poder político e econômico, e ao mesmo tempo executava um projeto exclusivamente eurocêntrico de formação de uma nação “brasileira” (tal qual Missão Francesa), os grupos Iorubás chegaram e trataram de reorganizar, refundar sua nação ancestral, com a qual existia uma ligação dos mais variados e profundos aspectos. Foi organizado no Brasil um culto ancestral a partir do estabelecimento de 16 representantes do conjunto de nações de que eram provenientes a maioria dos iorubanos aqui presentes. O famoso Xirê composto por Exú, Ogum, Odé, Ossãe, Omolu, Oxumarê, Nanã, Iansã, Obá, Iewá, Oxum, Logun Edé, Xangô, Iemanjá, Oxaláguian, Oxalalufã. 


Cada um reprensentando uma região, uma cidade, uma linhagem específica que compunha a grande “nação” Iorubá.  As matriarcas Iyá ADetá, Iyá Kalá, Iyá Nassô, Babá Assiká e Bangboshê Obitikô conforme fontes como Pierre Verger e Renato da Silveira, pertenciam à linhagem direta do culto ancestral de Oyó, cidade-Estado predominante com estruturas de um império, o Império de Oyó. Tal império tinha por sua vez uma cidade-Estado integrada e aliad: Ketu. Esses eram os locais mais prósperos e dominantes do período da expansão islâmica. Portanto essas matriarcas reproduziram em uma dimensão religiosa algo que muito se aproximou da configuração nacional de grande grupo étnico. O candomblé de Nação Ketu é a síntese das nações (cidades-Estado, sub-regiões e reinos) do centro-oeste Africano, especificamente entre as inúmeras veredas que compõem a bacia do rio Níger. 



Essa síntese carrega em si uma coletânea de virtudes, com um acervo vasto de representações mitológicas, memórias tradicionalmente preservadas como um valioso baú de conceitos teológicos, concepção cósmica, princípios éticos, sistema oracular e simbólico que conecta espiritualismo, ancestralidade, forças/leis da natureza, misticismo e energia. Síntese que preserva a memória de ancestrais fundamentais na existência das muitas subnações Iorubás. Os Obás Odé e Xangô. O Patriarca Oxalufã. As matriarcas Iemanjá e Nanã, sendo que Nanã, seu filho Obaluayê (Omolu), também um antigo rei que teve suas terras invadidas pela expansão de Oyó. Fato que determinou a presença de muitos elementos de origem Jeje dentro do Candomblé de Nação Ketu.
O Brasil, tem em sua rica diversidade de matrizes que resultaram em ainda mais diversificadas tradições, uma especificamente singular porém muito pouco explorada. As tradições reproduzidas no seio de um grupo que pratica o Candomblé de Nação Ketu reproduz no tempo e no espaço, a resistência cultural de uma nação, no sentido mais essencial da palavra. As saudações, os símbolos, cores, rezas, palavras de uso cotidiano, ritmos, melodias, gestos, danças, procedimentos diversos.  Os mitos e ritos que consagram cada ação e atitude. Existem ritos que consagram o alimento, os objetos (babalaxé nylewá), a iniciação, as folhas, o sangue, o banho, a água, o álcool, os temperos, a carne, o sacrifício, os antepassados, o vento, o fogo, a pedra. Tudo é cotidianamente sacralizado com rezas e cânticos (orikis, adurás e adarins) dentro uma comunidade de candomblé. As noções de certo e errado (apesar da forte influência cristã) os princípios morais, a relação do ser com seus vícios, tudo isso é evidentemente autêntico com fundamentos sólidos e singulares proveniente de um grupo específico que apesar do contexto de violência extrema e opressão, conseguir organizar. Além disso, o Axé enquanto força cósmica que transmitimos de nós mesmos em conformidade e sintonia com os ancestrais, como se fosse a energia mais essencial à nossa existência como parte do universo. A pedra, o vento, a água, sua mente, seus suor. Tudo tem axé. Cargos administrativos vinculados à hierarquia religiosa (Babakekerê, Ialaxé, Axogum, Alabê, Pegigan, Babáegbé). Hierarquia religiosa baseada em compromisso com o servir, orientar, exemplificar e ensinar. A perpetuação oral e ritualística de um conhecimento milenar.
O Candomblé de Nação Ketu é um fenômeno religioso, cultural, político, ideológico, teológico, social e antropológico com uma imensa gama de possibilidades a serem compreendidas para serem valorizadas, preservadas e fortalecidas. E acima de tudo para que se tenha mais poder de preservação e resistência. Todos esses aspectos que compõem o universo do Candomblé de Nação Ketu é uma imensa fonte de informações, argumentos e evidências para a desconstrução de estereótipos e preconceitos ainda inexplorada. Fonte para buscar sanar a lamentável ausência de conhecimento específico. Para gerar argumentos em prol do respeito à diversidade assim como do auto reconhecimento por parte dos milhares de adeptos do Candomblé de Nação Ketu e de muitos outros cultos e tradições diretamente influenciados pelo culto ancestral africano. 

Educação antirracista

Muito se fala em educação antirracista. Muito mesmo. Virou até capital de currículo, marketing digital pra empresários e polítiqueiros da ed...