Compartilhando saberes, por Alan Geraldo. Professor de História, Candomblecista e escrivinhador.
quinta-feira, 28 de novembro de 2024
20 de novembro, Zumbi de Palmares e a cultura de terreiro
quarta-feira, 27 de novembro de 2024
Cristianismo como fenômeno de amor e ódio
terça-feira, 26 de novembro de 2024
O culto aos Caboclos como preservação e existência das raízes indígenas nas religiões afro-brasileiras
Avaliação no curso de
pós Graduação em Cultura e arte afro-brasileira e indígena na Educação: Fundamentos
da cultura afro-brasileira do Curso de
Especialização em História e Cultura afro-brasileira e indígena do Instituto
Multidisciplinar de Educação Profissional – IME.
Os
povos indígenas do Brasil ainda lutam pela sua própria existência, território e
preservação da identidade. Sua luta é política, social, econômica e cultural. E
suas memórias e raízes não se limitam apenas às comunidades tradicionais que
mantém suas tradições, mas está difundida e presente em muitas expressões da
sociedade. E nas religiões de matriz afro, como Umbanda e Candomblé, essa raiz
é viva na memória, nos hábitos, no comportamento e na espiritualidade. E o
artigo que segue se propõe a contextualizar a presença dessa raiz dentro do
culto afro e demonstrar seu valor e importância.
Os Caboclos brasileiros, termo que
identifica entidades indígenas e de herança indígena (boiadeiros) nos cultos
sincréticos da Umbanda e do Candomblé, enquanto entidades espirituais presentes
nas diversas manifestações religiosas espiritualistas existentes no Brasil, e
que tem como matrizes a religiosidade indígena e africana, são a herança e
permanência da ancestralidade e tradição indígena entre as religiões de matriz
afro no Brasil.
Quando os africanos se encontraram
com os indígenas no interior das florestas brasileiras ocorreu um
reconhecimento e identificação do quanto eram semelhantes suas concepções
religiosas. A ancestralidade, as forças da natureza enquanto principais regentes
da vida na terra, o princípio da energia enquanto fator fundamental da
espiritualidade, a presença do invisível, a harmonia e integração entre o mundo
espiritual e o material. Todas essas concepções comuns entre o que já existia
na América e aquilo trazido pelos africanos foram percebidas no contato entre
tais povos. Das relações sociais que surgiram no interior dos quilombos e no
contato entre os quilombolas e os indígenas houve uma contínua integração entre
os rituais religiosos e os conhecimentos acumulados por ambas as partes.
Ao longo do tempo, com as
configurações e a formação dos terreiros de Catimbó, Jurema, Terecô, Xangô,
Amolokô, Candomblé, Umbanda e outros, os caboclos se tornaram entidades
primordiais nesses cultos, chegando é se tornar quase impossível a distinção
entre o que é africano e o que é indígena nesse culto aos caboclos.
Os índios brasileiros, em grande
parte, aceitaram muito bem a doutrina cristã como referência religiosa. O
princípio da caridade, do perdão, do amor ao próximo e incondicional, do fazer
o bem sem ver a quem, foram princípios aos quais os indígenas se identificaram
com facilidade, principalmente por parte dos Pajés e Caciques que eram os
responsáveis pela organização política e social das comunidades indígenas.
Em todo o processo de sincretização
religiosa, ou seja, da mistura das tradições religiosas, a participação da
tradição indígena, essencialmente brasileira, se deu na figura do caboclo. Ou
seja, dentre todas as religiões e manifestações existentes no Brasil, a
contribuição e a representação do que é realmente nosso, estão nos Caboclos.
No caso dos Candomblés de nação, a
preservação do culto aos Caboclos se dá em diferentes graus por uma questão
histórica. Os povos Bantu, provenientes da atual região do Congo e Angola,
foram os primeiros a desembarcarem no Brasil na condição de escravos. Ainda no
séc. XVI (a partir de 1530) as fugas ocorridas logo que os primeiros navios
negreiros aqui aportaram, deu início, no interior de nossas florestas e campos,
a formação dos quilombos e o constante contato entre estes e os povos locais,
os indígenas. Portanto, nos candomblés de nação Angola o culto aos caboclos é
mais tradicional, profundo e presente do que nos candomblés de nação Ketu. Isso
porque a candomblé Ketu é proveniente do povo iorubá. E quando os iorubás
chegaram ao Brasil em meados do séc. XVIII (1750) existia um ambiente mais
urbano os permaneceram muitos desses africanos e onde surgiram as primeiras
casas de Candomblé de Nação Ketu (Salvador). Além disso, nessa época já
adiantada de nossa colonização, a presença de indígenas era muito menor nessas
regiões de fazendas de cana de açúcar, cacau, gado, café e minas de ouro para
onde se direcionavam a mão-de-obra escrava. Isso quer dizer que, o contato dos
Yorubás com os indígenas se deu em menor grau e intensidade em relação ao
bantus. Porém esse contato ocorreu e gerou influências e sincretismos.
Tal questão gera uma polêmica entre
defensores das tradições candomblecistas. Afirma-se, em determinada linha de
pensamento, que na tradição Ketu não se deve cultuar os chamados catiços (exus,
pombogiras, caboclos), pois isso foge à tradição Ketu uma vez que os iorubás
cultuavam apenas os Orixás. Porém isso gera uma contradição, pois se fossemos
preservar as tradições iorubás literalmente não haveria nem mesmo o candomblé
em seu formato atual, pois isso não existia na África. Além disso, o próprio
candomblé Ketu é fruto de um complexo sincretismo ocorrido no Brasil. E nele há
fortes influências Bantu, indígena e até cristã (em menor grau). O sincretismo
que gerou o Candomblé enquanto religião específica tipicamente brasileira é de
tamanha complexidade que se tornou quase impossível delimitar e classificar as
matrizes específicas que deram origem a cada ritual e cada concepção do culto.
Outro fator que também gera uma contradição à questão se encontra no princípio
da ancestralidade. Se nosso povo é proveniente da mistura étnica a
ancestralidade indígena deve ser cultuada e preservada uma vez que compõe a
nossa ancestralidade.
Há também o conhecimento sobre as
folhas e outros elementos locais que foram integrados aos rituais do candomblé
a partir do conhecimento indígena, mesmo na nação Ketu. Desse modo, mesmo que
seja praticado em menor grau, o culto aos caboclos é algo que faz parte do
nascimento do candomblé, inclusive o de Ketu. Portanto não é uma contradição
que as casas de Ketu mantenham vivos o culto aos caboclos. É, pelo contrário
uma obrigação, visto a contribuição indígena e à ancestralidade presente em
nossa composição enquanto povo brasileiro. Contudo é importante destacar que a
origem desse culto dentro dos candomblés se dá no seio dos quilombos formados
pelos povos bantu, tanto que nas cantigas e rezas de caboclo a língua bantu se
faz tão presente quanto a língua portuguesa, em maior grau até mesmo do que a
língua Tupi-guarani.
As memórias e a história
afro-indígena brasileira não se limitam às narrativas dos livros, acadêmicos,
muito menos ao folclore em uma cultura difusa e desvalorizada. As concepções e
as raízes do modo de ser, de pensar e de viver afro-indígena estão bem vivas
nas religiões afro-brasileiras, e consequentemente vivas na sociedade como um
todo. E se é uma cultura viva deve ser valorizada e preservada. Conhecer as
raízes do que se pratica como religião e espiritualidade reforça a identidade e
o exercício da cidadania em uma sociedade ainda em construção. Reforça o
argumento perante a lei, reforça o brio perante os ignorantes.
BASTIDE,
R. O candomblé da Bahia. Trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
CACCIATORE,
O. G. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1988.
POMPA,
C. Religião como tradução. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
TIBIRIÇÁ,
L. C. Dicionário tupi-português. Com esboço de gramática do tupi antigo. São
Paulo: Traço Editora, 1984.
Terreiro de macumba
quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Bater Cabeça: submissão, adoração, respeito, confiança
Dentro das tradições simbólicas nas religiões afro-brasileiras em geral, a ato de “bater cabeça”, ou seja se prostrar com a testa no chão aos pés do Sacerdote ou da própria entidade a que se está cultuando é comum a quase todas. Mas afinal, o que significa ou envolve tal atitude?
O ato de “bater cabeça” carrega em si vários significados.
Das mais antigas tradições dos reinos teocráticos de todo o mundo, a relação com o chefe de governo era sagrada. Não se podia olhar nos olhos de seu rei ou de sua rainha. Em sua presença os súditos ficavam prostrados ao chão.
Os africanos vindos como escravos para o Brasil viviam, em África, nesse mesmo tipo de sociedade. Reinos e cidades-estado teocráticos. Mantinham relações totalmente sagradas com seus reis, rainhas, príncipes e princesas. E tais relações eram de comum acordo, pois, por ser considerada sagrada, não necessitava de obrigatoriedade pela força. A própria relação com o sagrado predispunha os súditos ao respeito às leis. Ninguém contestava, salvo excessões, a legitimidade da autoridade por uma questão cultural de reconhecimento ancestral e religioso daquele ou daquela sacerdote.
Os candomblés de nação formados no Brasil buscaram preservar muitas dessas tradições comuns aos reinos, pois não se separava sociedade, política e religião. Da mesma forma não foi possível separar totalmente as tradições religiosas reproduzidas aqui das tradições sociais do cotidiano. Em outras palavras, quando se estruturou os Candomblés de Nação, em especial o Ketu. E uma dessas permanências foi a relação com o sacerdote como um governante daquela mini-sociedade, no caso os terreiros e casas de Candomblé. Ou seja, a princípio o ato de “bater cabeça” é a reprodução de uma relação entre líder e súdito milenar e comum a muitos povos.
Além da tradição social, existe a relação com a terra. Nosso “Ori”, ou seja, nossa cabeça, nossa mente tem como referência de sagrado a terra e não o céu. Da terra viemos e a ela voltaremos, como diria o cristão. Sempre quando se menciona o nome de alguma entidade importante se volta a cabeça ao chão, à terra que é a origem e o fim de tudo que é vivo e orgânico. Louvamos a terra e não ao céu. O gesto de levar a mão ao chão e depois ao “Ori” para então beijar a mão novamente, nada mais é do que a representação de “bater cabeça”.
A autoridade é outro fator importante. Quando você se presta a colocar-se de cabeça ao chão perante outra pessoa, no caso o Sacerdote (Babalorixá ou Yalorixá), você se declara, perante a sociedade, submisso àquela pessoa. Porém não é apenas uma submissão política e social. Mas sim sagrada em que se entrega a própria vida, as próprias decisões àquela pessoa.
Muito bem. Deveria ser assim. Mas para a maioria das pessoas é um gesto convencional. Muitos praticam, mas não sabem seu significado. Prostram-se aos pés de pessoas que não respeitam, apenas para cumprir uma formalidade sem saber da importância e do significado de tal gesto.
Assim como o “bater cabeça” muitos outros gestos, símbolos e relações dentro dos Candomblés de Nação buscam preservar tradições que vão além do campo religioso. Isso porque religião, política, sociedade não se separava nas sociedades africanas Yorubás e Bantus. Assim como não deveria se separar em nenhuma sociedade, pois é na ética e dos valores religiosos que buscamos e inspiramos nossas atitudes sociais e políticas.
Macumba?!?! Não chuta que eu gosto.
Macumba é:
Festa
Comida
Música
Dança
Fé
Roupa linda
Alegria
Pé no chão
Encontro
Energia
Ancestral
Força
Tambor
Cantar
Gratidão
Devoção
Natureza
Diversidade
Liberdade
Mistério
Razão
Circularidade
Resgate
Ritual
Conexão
Acolhimento
Harmonia
Amor
Compreensão
Respeito
Família
Orixá.
Qualidade de Orixá
O culto aos Orixás no Brasil se estruturou a partir da formação de um Xirê composto para alcançar a diversidade do culto em África. Muitas pessoas de variados reinos iorubas vieram para cá, trazendo consigo seu culto ancestral. Esse Xirê cumpre então a função de integrar em um único culto diferentes Orixás, cultuados de maneiras diferentes. Porém a diversidade de Orixás, na realidade é bem maior do que, os 16 Orixás que compõem o Xirê. E é daí que nasce a ideia de qualidade de Orixá.
Existem diferentes critérios para atribuir qualidades aos Orixás. Citarei aqui três exemplos. Ogum, Odé e Xangô.
Ogum, enquanto ancestral, foi um general de Guerra e rei de Irê. Conquistou muitos outros reinos ao longo de sua vida. Cada fase de sua existência foi marcada por conquistas, eventos e situações singulares que o caracterizaram e expandiram seu culto para diferentes e regiões. Desse modo cada qualidade de Ogum representa uma passagem de sua vida em que ele conquistou e viveu em determinada região e passou por situações diversas.
Odé, por sua vez, é um título. Odé significa caçador. Um dos mais importantes cargos dentro dos reinos iorubas era o de Caçador. Todo reino, toda aldeia, toda cidade ioruba tinha o líder e um grupo de caçadores. Nas terras de Kêto, Akueran era o caçador e rei. As terras de Igbô tinham seus caçadores e assim por diante. Portanto, cada qualidade de Odé, na visão de ancestralidade, é um Orixá diferente. Odé Akueran, Odé Ibô, Odé Ibôalamo, Odé Danadana. São essencialmente Orixás diferentes. Porém cultuados no Brasil de forma semelhante como um único Orixá.
Xangô é proveniente de uma linhagem real do Império de Oyó. Ao longo de séculos de existência do Império de Oyó muitos reis se sucederam. Dentre esses reis estão Airá, Aganju, Agodô, Afonjá, Xangô. Então mais uma vez temos um diferente critério para atribuir uma qualidade.
É fato que iniciar e cultuar um Odé ou um Xangô de qualidades diferentes não é exatamente a mesma coisa. Odé Akueran era cultuado, em África, com alguns rituais e elementos diferentes de Odé Ibô. Da mesma forma, existiam regiões dentro do Império de Oyó que prestavam culto a Airá enquanto outras regiões prestavam culto a Xangô. Então, quando os iorubanos vieram para o Brasil, trouxeram consigo esse conhecimento. É por isso que quando falamos, por exemplo, em Airá e Xangô, existem sim algumas particularidades no culto de cada um, porém eles estão inseridos, no Brasil, dentro de um mesmo culto, portanto podem ser cultuados como o mesmo Orixá. Numa visão antropológica eles não são o mesmo, mas numa concepção litúrgica de culto e ancestralidade eles estão no mesmo culto. Compartilham dos mesmos elementos, dos mesmos cânticos, dos mesmos rituais, salvas algumas exceções de detalhes como cores predominantes.
Pai Agenor Miranda, relata em uma entrevista que antigamente os Pais e Mães de Santo tinham como hábito auxiliar e trocar conhecimentos uns com os outros. Quando um não sabia como fazer os atos de determinado orixá, ou mesmo de determinada qualidade, outro auxiliava numa relação de amizade e compartilhamento, sem críticas e conflitos. Sem querer disputar filho$ de $anto ou cliente$. Isso pelo simples fato de que o conhecimento de cultos era diferenciado de acordo com a origem de cada um. O que assistimos hoje, comumente, são conflitos, contradições, críticas, discórdias sem fundamento histórico, religioso, antropológico ou litúrgico.
Educação antirracista
Muito se fala em educação antirracista. Muito mesmo. Virou até capital de currículo, marketing digital pra empresários e polítiqueiros da ed...
-
Na cultura iorubá, que tá viva na macumba aqui, existe uma coisa chamada abikú. A tradução literal é junção das palavras que significam cri...
-
Pra praticar o Candomblé é preciso cumprir preceitos. Vários tipos. Alimentos, sexo, roupas, cabelo, ambientes, álcool. E varia de acordo co...
-
No Candomblé não tem "de graça" e caridade é rito só em agosto. O resto do ano é rotina opcional de acordo com seu caráter. O asé...