domingo, 29 de setembro de 2024

Hierarquia e poder na sociedade de terreiro

Umas das questões mais evidentes e complexas da cultura de terreiro é a formação de pequenos núcleos ou células de hierarquia e exercício de poder.
As formas como os terreiros se constituem e se organizam, assim como a forma com que uma pessoa se torna um sacerdote é, acima de tudo, muito espontânea. Nesse fenômeno hiper diversificado que é a religiosidade de terreiro, não há bem regras definidas, procedimentos pensados e organizados por lideranças específicas, com determinados espaços de debates, estatutos regulatórios, nem nada do tipo. O que há é algumas regras tradicionais, orais, e difusas, que não compreendidas ou seguidas, de acordo com a vontade ou capacidade de entendimento de quem se propõe a ser uma pessoa líder de comunidade de terreiro.
Grosso modo, os líderes conduzem suas comunidades conforme sua própria visão e interpretação da coisa toda, e de um somatório de suas próprias experiências e saberes.
Mas nesse fenômeno de comunidades, lideranças e sacerdócios espontâneos, há uma questão socialmente importante e psicológica e antropologicamente complexa.
A possibilidade de se tornar líder, alguém importante e seguido. Alguém que será admirado, bajulado e adorado por seus seguidores, dentro de uma relação sagrada de fé, lealdade e servidão, abre espaço para o exercício de todo tipo de irresponsabilidades e abusos de todo tipo.
Um pai ou uma mãe de Santo, ou seja, um líder de comunidade, exerce um poder e um influência no comportamento e nas atitudes de outras pessoas que é até difícil compreender. É algo de subconsciente coletivo de nossa sociedade. Quando alguém se apresenta como pai ou mãe de santo, as pessoas de sendo muito comum, de muita fé e pouca escola, acabam depositando as decisões da vida nesse líder. Como se ele representasse a vontade dos Orixás. E essa relação e forma de enxergar esse líder, pode ser fundamental para que essas pessoas conduzam sua própria vida, ou pode ser uma grande armadilha para abusos e assédios financeiros, morais, sexuais e outras violências.
O fato é que qualquer sacerdócio, de qualquer cultura religiosa, é uma existência de servir, de estar disponível, de cuidar, de tomar decisões pela vida dos outros, de acolher até mesmo quem faz o mal. Ao passo que a vivência de terreiro faz muita gente acreditar que ser sacerdote é ser servido e adorado. É exercer autoridade e poder, e fazer valer suas vontades. Uma coisa é consequência da outra, nessa ordem descrita acima, e não o contrário.
Pessoas que se formam em terreiros e experimentam viver como líderes, sem compreender a complexidade do servir, a dimensão dos efeitos de sua ética, ou falta dela, na vida dos outros, fazem grandes estragos na vida de pessoas que depositam fé, lealdade, tempo, dinheiro na crença que de que aquele líder realmente zela por ti.

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